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NUNCA MAIS

  • Foto do escritor: Marta d'Orey
    Marta d'Orey
  • 13 de out. de 2015
  • 5 min de leitura

Recebi o diploma. Dei um aperto de mão apressado, e virei costas, sem olhar para trás, como quem não se compromete com a efemeridade de um “para sempre” dito de favor. Sabia que o dia havia de chegar, e que o salto ia ser em queda-livre, e que a única constante, segundo me haviam dito em frases baratas gravas em imagens de toque cliché, é a mudança.

O que eu não sabia é que os dias se iam atropelar uns aos outros, e que doze anos não ditam uma vida inteira. Lembro-me de não contar a altura em um metro e vinte, e contar os anos, como que se os dedos das mãos não me chegassem, e refilar, com um revirar de olhos, que a escola nunca mais ia acabar, que ia ter de esperar, e esperar, e esperar ainda mais, até me doerem as costas de tanto carregar mochilas maiores do que eu, e as mãos desenharem caules nos dedos onde a caneta escrevia trabalhos de casa esquecidos, feitos à pressa, antes de soar a campainha que marcava o início de uma aula onde o relógio parecia, ter tomado uma dose demasiado elevada de Valdispert, e num compasso meio grogue, mover-se ao ritmo dos dias.

“Nunca mais acaba...”. Lembro-me de o dizer numa manhã melancólica de outubro, sentada no banco de trás do carro do meu pai, enquanto esticava o pescoço para ver o sol erguer-se e invejar-lhe a sorte de poder acordar lentamente num bocejar prolongado, e erguer-se sobre os lençóis do mar, sem que ninguém o impedisse de dormir “só mais cinco minutos.”. Sem tirar os olhos da estrada ainda iluminada pela luz dos candeeiros, o meu pai abanava a cabeça, e com uma expressão sabida pelo anos de vida, dizia: “ – Passa a correr, por isso, aproveite. Um dia vai ter saudades.”. E como os pais têm um jeito especial para escolher palavras só compreendemos quando já os conseguimos olhar nos olhos ao mesmo nível, esse dia chegou, e chegou sem avisar, tão abruptamente como um golpe de espada que atravessa o tempo à velocidade da luz, deixando-nos encadeados. Esse dia chegou, e eu tenho saudades.

Tenho saudades de me perder em labirintos de prateleiras ao nível do teto, fechar os olhos e sentir o cheiro dos cadernos ainda por estrear e dos livros ainda por ler. Tenho saudades de escolher o afia em forma de peixe-balão e a borracha que, quase como que por magia, também apagava caneta, apesar de passado um mês, ter o estojo cheio de aparas porque o raio do peixe não conseguia ficar de boca fechada, e nos textos de português as palavras com erros ortográficos darem lugar a buracos no papel, porque afinal, a borracha mágica tinha perdido os seus toques de perlimpimpim e mais parecia ser feita para lixar serradura. Tenho saudades do nervoso miudinho que antecedia o primeiro dia de aulas, de repetir sucessivamente, para mim mesma, que tinha de entrar com o pé direito, para depois pisar o chão de mármore polido com o esquerdo. Tenho saudades de me sentar na ponta da cadeira porque se me encostasse, ficava com os pés a baloiçar no ar. Tenho saudades da altura em que o fruto proibido era pedir a caneta ao miúdo franzino com um ar assustado, que se sentava ao pé de mim, e de lhe surripiar a tão querida caneta da mão trémula, quando a professora voltava as costas para escrever no quadro de giz. Tenho saudades de o meu nome ser dito tantas vezes, que nem soma nem multiplicação lhe davam resultado, e de desviar o olhar da expressão desaprovadora da professora, enquanto roía os cantos da boca tentando conter o riso. Tenho saudades dos cadernos roídos nos cantos, por bilhetinhos sussurrados de mão em mão, que perguntavam “Queres jogar futebol no recreio?”. Tenho saudades do tempo livre ser ocupado com contrabando de autocolantes, e insurreições armadas contra a miúda gorducha de óculos que tinha feito queixinhas à auxiliar. Tenho saudades de quando a injustiça acontecia quando os mais velhos nos passavam à frente no bar, e o mal era fazer “grupinho à parte”. Tenho saudades dos gatafunhos feitos nas margens das folhas, porque tudo o que não fosse ouvir que o Pretérito Perfeito falava de ações inacabadas, e que o X é um incógnita era digno de interesse.

E no último dia daquilo que até agora foi a minha vida, tentei aproveitar, tentei absorver e reabsorver o que me rodeava como uma esponja que ressuscita memórias, tentei viver tudo como se fosse a última vez. Tentei, mas não consegui. Não consegui porque apesar de parecer simples, o carpe diem é um dilema do caraças. Por isso, acordei, mais uma vez invejei o sol, mais uma vez passei aquela porta com o pé esquerdo, adormeci com a cabeça encostada à parede na primeira aula da manhã, ouvi o meu nome ecoar no ar só porque me virei para trás, supliquei ao relógio que tivesse pressa, fiz gatafunhos numa folha de papel, pus a mochila às costas, e saí porta fora, como se só de mais um dia se tratasse.

Talvez seja mesmo isto que querem dizer quando, num jeito fácil e descomprometido, nos pedem que aproveitemos enquanto dura. Talvez aproveitar realmente algo, seja ser inconsciente da sua finitude, e gozá-lo, sem “ontens” ou “amanhãs”, só como um presente que faz jus ao nome que lhe deram. E assim percebi que são os dias a quem chamamos banais, que são mais parte de nós. Que se inscrevem em rotinas e nos amarram em laços feitos de lugares que já fomos, e pessoas que já vimos.

Por isso, agora, a saber que o X é realmente uma incógnita, cerro os punhos, engulo os medos, meto a mochila, cada vez mais pesada, às costas, e vou para a Universidade, onde nos dizem que somos adultos e que estamos por nossa conta. Pois muito bem, posso não ter o bibe para me proteger das manchas de tinta salpicadas das mãos rebeldes que agarram o pincel como se este viesse com indicação para agitar antes de usar; posso não ouvir o meu nome ser gasto em tom de repreensão, nem uma caderneta onde possam escrever recados que ditam aquilo que fiz mal, para um dia, fazer melhor, mas vou fazer isto, porque nunca gostei do inacabado que o medo dá aos verbos. Vou refilar, amuar, cruzar os braços e cerrar os dentes com toda a força, na esperança de pedir de volta aquilo que o tempo me tirou, mas vou sentar-me no banco da frente do carro do meu pai, olhá-lo nos olhos à altura dos meus, e responder-lhe ao que um dia me perguntou: “- Crescer foi uma grande aventura.”.


 
 
 

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