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NÓS FIRMES

  • Foto do escritor: Marta d'Orey
    Marta d'Orey
  • 22 de dez. de 2015
  • 3 min de leitura

Era dia 2 de julho. Dentro do carro, o ar estava quente e abafado, como sempre fica quando o sol nele se abate nos dias que anunciam um verão ainda por chegar.

Marta estava sentada no banco de trás com os pés a balançar freneticamente e as palmas das mãos suadas ora do calor, ora do nervoso miudinho que lhe dava voltas ao estômago.

Saiu do carro, e a medo, esticou-se até chegar à campainha de um edifício grande e amarelo, que em setembro seria a sua nova escola, a juntar à lista de novidades que a esperavam com a mudança de casa. Tocou, entrou, e seguiu pelos corredores escuros até chegar ao pátio.

Um grupo de crianças mais ou menos do seu tamanho juntava-se à volta de dois meninos de óculos vestidos de igual, cada um detentor de um bolo confecionado com rigor, e um sorriso orgulhoso na cara. Ao que diziam, eram os gémeos Abecasis, e este era o dia do seu aniversário.

Marta, juntou-se à multidão que os rodeava, fingindo partilhar do mesmo entusiasmo do público que os observava atentamente, e disfarçando a sua ignorância relativamente ao nome dos dois gêmeos cantando grunhidos ao som do “parabéns”.

Quando podia ruía as unhas, e olhava repetidamente os ponteiros do relógio que pareciam não se mover.

Já tinha desistido das investidas de socializar com aqueles que seriam parte da sua futura turma, quando ela apareceu.

Rita era uma menina pequena, ainda mais pequena do que aparentara ser perante o bolo ilustre recheado de cores florescentes e desenhos detalhados, e o seu sorriso era agora simples e descomprometido de todo o protagonismo que outrora ostentara. Os seus olhos eram escuros como o seu cabelo, e os óculos encarnados assentavam perfeitamente sobre as bochechas rechonchudas cor-de-rosa.

Trazia um pedaço de fio encarnado, na mão pequenina, e assim, sem mais nem menos, disse com toda a espontaneidade que têm somente aqueles que não conhecem a finitude:

-"Queres fazer parte do clube das melhores amigas?"

Marta, para quem o infinito tinha, também, alcance, acenou com a cabeça e sorriu-lhe abertamente. Rita passou-lhe o fio de volta do pulso, e deu um nó com toda a força que tinha. Marta agarrou num segundo fio idêntico e apertou a pulseira no pulso de Rita, no mesmo gesto firme e comprometido. A partir daí, o entusiamo fingido deixou de o ser, e o nome de Rita passou de grunhido disfarçado, para a palavra mais proferida dos dias de Marta.

É dia 2 de julho, e nove anos passaram deste que as duas meninas deram nós às pulseiras encarnadas. Marta já toca com os pés no chão do carro, e Rita trocou os óculos encarnados por lentes de contacto.

Marta está sentada na cama, e ao som dos Matchbox 20, tenta traçar em papel a cor que a Rita pintou na sua vida. Mas não consegue. Não consegue porque tal seria escrever uma vida inteira. E perante esta impossibidade, Marta percebeu uma coisa: percebeu que Rita é uma grande parte de si. Que é um resultado de um conjunto de sítios por onde passou, palavras que ouviu, e pessoas que conheceu. E assim soube exatamente a imensidão de vida que Rita lhe trouxera.

E passaram nove anos; e os dias foram levados pelo sol; e a lua já mentiu muitas vezes; e o mar rebentou em rocha dura que é agora areia.

E as duas meninas agora mulheres, sem saberem, deram nós firmes em pulseiras de fio encarnado, mais vezes do que o tempo pode contar.

Porque todas as manhãs são tardes de julho, e todos os dias, Rita atravessa o pátio em direção à menina envergonhada que olha o relógio ansiosamente. E em cada hora ela sorri abertamente, e Marta acena-lhe de volta. E ambas se escolhem uma à outra uma e outra vez, num jeito simples e despercebido, que percebe o que é ainda acreditar na infinidade.


 
 
 

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