EU E A VIDA
- Marta d'Orey
- 11 de jan. de 2016
- 3 min de leitura

Sempre nos demos bem. Nunca disputámos brinquedos, nunca lhe gritei porque tinha fome, nunca lhe chorei porque arranhei o joelho, e jamais lhe pedi que se marcasse com um ponto final, porque sempre fui mulher de vírgulas.
E lá íamos nós, eu e a vida, sempre seguras, sempre satisfeitas, sem nada a pôr nem a tirar. Ora a vida que me foi dada, deu-me a mim, também, muito do que tenho. Deu-me uma casa onde o chão se desenha em calçada, e os prédios se pintam em tons alegres que se preenchem do fado cantado com corpo e alma. Deu-me uma família que se alarga para além do sangue, dias azuis e mergulhos no mar, pastéis de nata, noites estreladas, bolas-de-berlim nas mãos, areia quente nos pés, pores do sol para acolher memórias, e manhãs de inverno para abraçar o dia. Mas acima de tudo, Quem me deu a vida, deu-me, também, a escolha de a fazer viver.
E lá íamos as duas, eu e a vida, com dias por traçar em mapas definidos e roteiros planeados com antecedência. Tudo era simples, fácil e previsível.
Até que, um dia, os mapas desenharam encruzilhadas, e os roteiros não pareciam levar a lado nenhum. Até que um dia tive a sensação de estar a viver a vida de alguém que não a minha. Até que um dia, vi a imprevisibilidade apoderar-se de mim, e senti o peso da liberdade pesar-me nos ombros. Até que um dia, em jeito obediente aos dizeres que tantas vezes me tinham sido repetidos, ao atravessar a estrada, olhei para um lado, olhei para o outro, e procurei o momento certo para fazer a travessia com a devida segurança. Acontece que não encontrei segurança em parte nenhuma. Não estava escondida por debaixo das pedras do passeio, nem encolhida ao virar da esquina. Por isso, franzi o sobrolho, fechei os punhos, cerrei os dentes, e atravessei a estrada, desprovida de certezas e cheia de um medo que me fazia tremer as pernas e encolher o peito.
Nesse dia, enchi malas com bocadinhos da terra onde me fiz eu, alcei aos ombros uma mochila de perguntas às quais eu não sabia responder, enfiei fotografias daquilo que tinha sido no bolso de trás das calças, e, no da frente, o passaporte para o que viria a ser. Sentei-me, apertei o cinto, e deixei que o céu pintasse nuvens por debaixo dos meus pés. Olhei para a janela e vi a minha cidade ficar pequenina, tão pequenina, que as casas já não pareciam casas, e as estradas não eram mais do que rabiscos escondidos entre sete colinas. Agarrei-a bem, e guardei-a no coração.
Nesse dia, o céu mudou de cor, e o mundo parecia ter trocado os hemisférios. Era tudo tão novo, tão incerto, tão diferente. Quando olhei à volta vi casas de tijolo e passeios largos que tentavam desesperadamente possuir tamanho para abarcar os tantos transeuntes apressados que lhes varriam o chão; vi gente branca, preta e amarela; vi um esquilo roubar bolachas das mãos de um menino com bochechas cor-de-rosa; ouvi palavras ditas entusiasticamente numa língua que não canta o fado, e andei por estradas onde tudo se faz ao contrário. Vi-me nos recantos desta cidade, e na sua diferença, dei por mim, a encontrar-lhe o encanto.
Olhei mais uma vez para o céu, tão novo e invulgar quanto o cinzento suave que lhe dava cor, e na brisa fresca da manhã vi a vida saudar-me de novo. Cumprimentei-a, então, com um aceno, e ao vê-la ali, a pairar sobre os telhados das casas de tijolo, percebi que já não andávamos lado a lado num passo arrastado pela rotina dos meus dias. Reparei que, pela primeira vez, era eu quem a seguia, a cambalear, e talvez a medo, mas com sede do mundo, e toda a coragem que é precisa para não dar tempo ao tempo.
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