top of page

SIGA

QUANDO SE É INTEIRO EM ALGUÉM

  • Foto do escritor: Marta d'Orey
    Marta d'Orey
  • 4 de dez. de 2015
  • 4 min de leitura

Hoje, por decisão ou por vontade, decidi abrir caixas cobertas por uma generosamente grossa, camada de pó, e vasculhar o baú, sem qualquer tipo de certezas daquilo que procurava. E como aquilo que nos faz ser inteiros, acaba sempre por voltar a ser peça do puzzle desconstruído pelo tempo e pela atrocidade do esquecimento roído por traças incompreensivelmente somíticas quanto às reservas de memória, voltei a encontrar-nos num espaço e num tempo que não eram nossos, mas que assim se fizeram em planos que um dia traçámos juntas, com uma caneta na mão, um papel pousado sobre uma mesa de um quiosque qualquer, um mapa-mundo ao nível dos olhos, e um nervoso miudinho preso no peito sedento de conhecer, de ver, de sentir, e de se meter num avião e sobrevoar as nuvens com a promessa de uma semaninha de férias. Encontrei-nos a vaguear pelas ruas apertadas e entrelaçadas que desenham Barcelona, com o sol a queimar-nos os ombros descobertos, e os vestidos a dançar com a brisa que sabia a 38 intoleravelmente imperdoáveis graus de suor, muitas lágrimas, e incontáveis gemidos de “não aguento mais!”. A verdade é que aguentámos, porque somos turistas guerreiras, ou então porque estávamos totalmente desprovidas de controlo sobre as nossas pernas que pareciam ter vontade própria e querer mais para além do que lhes podíamos dar. E assim, continuámos, à descoberta daquela cidade pintada com o melhor tom de dourado que o sol lhe dispôs antes de se pôr atrás dos prédios de tijolo encarniçado, e de contornos tão irregulares como as nuvens que raramente banhavam o céu azul. Os dias correram mais depressa do que nós, e os planos foram revirados do avesso. Afinal, por muito que tentemos seguir-lhes o rumo, a vida arma-se em esperta, e vem de nariz empinado e mãos erguidas, para amachucar os nossos ditames sobre o que ela nos traria, em bolas de papel amachucado. E é precisamente aí que ela entra em nós sem avisar, e nos abre os olhos para a beleza que é ter ar nos pulmões e puder inspirar aventuras e histórias para contar. E foi nestes dias em que eu me senti mais eu, e nós fomos mais nós, longe de tudo o que era nosso, sozinhas daquilo que não precisávamos. E ao ler estas páginas que se inscreveram em nós, dei por mim a rir às gargalhadas porque comemos gelados sentadas no passeio; e enchemos sacos com todo o tipo de indumentárias, ao ponto de as empregadas das lojas preferirem um desconto do ordenado, a ouvir-nos dizer que é demasiado largo e que a costura superior direita está desalinhada com a posterior esquerda; e fomos barradas do museu Picasso e ficámos contentes ao vermo-nos livres da obrigação, quase universal, de ir a, pelo menos um museu, mal se põe os pés fora de um avião; e tomámos banho numa fonte pública, que certamente se arrependeu por se tomar como propriedade de todos; e tivemos direito a sauna gratuita nos túneis do metro; e andámos de teleférico ao som do grande hit de 2004, mas que nem por isso deixa de ser intemporal, “Ana Júlia”; e comemos massa salgada demais, porque eu sou generosa com temperos e estou condenada a um diagnóstico precoce de hipertensão; e andámos numa montanha-russa que nos fez engolir 99,9% do ar circundante, e tossir o medo em jeito de orgulho disfarçado; e bebemos Sunny Delight como se fosse a maior dádiva jamais providenciado pelo Criador; e rimos de piadas tão estupidamente parvas que já nem nos lembramos; e subimos um monte por ruelas inclinadas com a promessa de um panorama sobre uma cidade inteira, daqueles que nos fazem ver que dimensão não é tamanho, e que mesmo assim, podemos ter um mundo debaixo dos pés; e caímos redondas na cama de molas oscilantes, e pousamos a cabeça sobre uma almofada cheia de sonhos para um dia seguinte. E ao rir-me, reparei que apenas as minhas gargalhadas ecoavam pelas paredes vazias de nós, que estas estavam apenas cheias de mim. E ao fazê-lo, os olhos vestiram-se de lágrimas, e o riso distorceu-se numa careta de choro. Rapidamente, contei os dias que faltam para vos deixar, e as contas foram surpreendentemente fáceis de equacionar. Somei os dias que faltam preencher, e subtraí aqueles em que não vos vou ter. O resultado foi maior do que a saudade, e proporcional àquilo que são em mim. Assustou-me e fez-me tremer por dentro, mas soube-me a verdade. E a verdade é que sei que tenho muito mais do que aquilo que pedi, quando percebo que tenho algo a perder. É assim que sabemos que somos inteiros, quando percebemos que nos construímos em alguém. Dito e feito, limpei o pó que cobria as páginas que juntas escrevemos e deixei o baú aberto, porque, hoje, encontrei-nos a vaguear por Barcelona, e, ao longe, tão clara e resplandecente como o sol que brilhava nesse dia, vi a amizade de uma vida. E esta é daquelas que não queremos perder em álbuns de nostalgia. Esta sim, constrói-se todos os dias, e monta-se em peças levadas à distância de três passos, ou de quilómetros sobrevoados sobre asas. E quando damos por ela, já se ergueu em algo muito maior do que nós, mas que nos cabe no coração e se funde no sangue que nos dá a vida que respiramos.


 
 
 

Comentários


  • Facebook Clean Grey
  • Twitter Clean Grey
  • Instagram Clean Grey

POSTS RECENTES: 

PROCURE POR TAGS: 

© 2023 por Armário Confidencial. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • b-facebook
  • Twitter Round
  • Instagram Black Round
bottom of page