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NA TERRA DO NUNCA

  • Foto do escritor: Marta d'Orey
    Marta d'Orey
  • 19 de fev. de 2016
  • 2 min de leitura

Estou no avião. A luz incandescente não me deixa dormir e o amigo da frente teve a simpatia de esticar as costas e fazer diminuir perigosamente o espaço que já mal me servia para encaixar as pernas. Escusado será dizer que já vi cenários mais confortáveis. Fiz questão de escolher o lugar da janela, como sempre faço, porque gosto de ver a dimensão perder-se em miniaturas, e encostar a testa ao vidro que se enfeita de flocos de neve quando a altitude congela o ar. Escusado será dizer que a vontade de ir à casa de banho é uma necessidade incrivelmente incompreendida e inadmissível aos olhos revirados do casal que viu a vida andar para trás quando, subitamente, descobriram que se sentaram ao lado de um alguém que por sua vez, até tem necessidades básicas. Estava faminta, e com uma sofreguidão que aos olhos alheios mais pareceu o desespero de alguém que não come há dois meses, abri o saco que, no seu interior, prometia uma sanduíche de pão chapata confeccionado na hora, recheado de tomate fresco, alface biológica, fiambre do lombo, e queijo chévre de marca com nome refinado. Escusado será dizer que a expressão "confeccionado na hora" tinha perdido o prazo de validade, e que no interior da iguaria residia uma infeliz folha de alface, um resto de casca de tomate com três grainhas pendentes, um amontoado de queijo ralado banhado em maionese, e uma generosa camada de 50 fatias de fiambre para dar formosura à coisa, seja ela qual fosse. Passei a manhã a fazer o que é feito todos os dias, e a tarde a empacotar uma semana com dias programados numa folha de post-it amachucada no bolso de trás das minhas calças. Foi um dia que se pareceu com todos os outros dias em que acordei com Londres a saudar-me da janela do quarto. Mas quando ligo o telemóvel e o deixo preencher a memória com palavras que não cabem numa só mensagem, encho o peito de lembranças vossas, e de planos que se farão nossos. O coração bate mais forte como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr sobre o mar que nos separa. Nunca gostei de fazer anos, e acrescentar um dígito à idade não é algo que faça de ânimo leve. Vivo na Terra do Nunca, e gosto da vista. Mas se fazer anos for dia para dar uma espreitadela ao que já se fez história, então sento-me com atenção e revejo-me nas palavras que cruzei e nas linhas onde tracei os meus dias. Hoje vi-vos a vocês, e nas lombadas grossas que carregam amizades que crescem como raízes numa manhã que sopra a penumbra azulada de um dia de Primavera, percebi que há muito a ser celebrado. Há a vida de alguém que se deu ao acaso e à sorte de estar rodeada de gente que não se compra em bilhetes de lotaria. Se fazer anos é isto, e se a gratidão é um sentimento que alimenta a alma, então bora lá celebrar a vida e abrir umas quantas garrafas a quem o tempo abriu o sabor.


 
 
 

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