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O FERMENTO DA DISTÂNCIA

  • Foto do escritor: Marta d'Orey
    Marta d'Orey
  • 18 de fev. de 2016
  • 3 min de leitura

Os meses passaram por mim, como um homem já graúdo que atravessa a rua em passo apressado, de pasta na mão e pressa na alma. Numa sofreguidão, quase desesperada, de recordar cada palavra que estes meses ditaram, de vez em quando, parava o dia para escrever em jeito de nota, os “ontens” que já tinham passado. Mas os dias riscados no calendário amontoaram-se uns em cima dos outros num emaranhado que me envolveu a mim. Quando tentei ver de fora, vi que já lá estava dentro.

É engraçado como as histórias que vamos escrevendo, não se reproduzem quando as lemos em voz alta, mas sim quando falamos do fundo de nós. São as narrativas do ser que se imprimem em nós quando levantamos a manhã na inocência de quem acha que o sol apenas acordou “mais um dia”.

Para mim viver a Norte era simplesmente saber as promoções do supermercado de cor em salteado, beber cappuccinos todas as manhãs a caminho do metro, enxotar esquilos com um pau a servir de lança, ver raposas a atravessar a rua e, no cansaço da noite, esfregar os olhos com força e duvidar se, sem me aperceber, dobrei o cabo da Boa Esperança e naufraguei num Safari ao Badoca Park. Na neblina que insiste em não ver outras vistas, não via mais nada senão tudo o que na rotina tinha inscrito.

A semana passada pus o a experiência que jurei para uma vida, em pausa, e as inquietações que se iam fazendo entrar, em modo silencioso. Voei para Lisboa e preenchi os meus dias com a azáfama de não fazer mais do que dar espaço ao que sufocava dentro de uma lista de “a fazeres”, esquecidos no bolso que guardava quando o Tejo me desaguava à porta de casa a cada alvorada que, aqui passei.

Respirei o cheiro a maresia e a sol, olhei a paisagem saturada numa paleta de tons quase demasiado brilhantes aos olhos onde o cinzento já se havia tomado como cor primária, e infiltrei-me, de novo, no povo que refila quando a ordem de entrada em transportes públicos não é devidamente cumprida, e despeja a alma a troco de dois dedos de conversa. A distância fermenta a gratidão e abre os olhos para o que o garantido ofuscou. Vivi a minha cidade como nunca o havia feito em dezanove anos de vida. É a diferença entre a limitação imposta pelo “viver nela”.

Com o saber que a estadia não se iria fazer durar e que o meu poiso era agora outro, entrei no voo de regresso para o que agora é a meu. Um sabor agridoce fez-se sentir e percebi que os ingredientes que o haviam cozinhado tomavam-se por nostalgia e vontade. A primeira a saudar a casa que se encolhia, agora, por debaixo dos meus pés; a segunda, sedenta de aterrar os pés na imensidão de possibilidades onde iria aterrar daí a umas horas.

Na altitude das perspetivas, vi com mais claridade os quilómetros que já percorri enquanto os meses tropeçavam uns nos outros, e soube que há muito que o meu crescer se deixou de fazer em altura. Só soube o caminho que percorri quando olhei para trás, e vi a miúda nervosa que se enfiou num avião que a levou ao acaso da imprevisibilidade. Ao voltar a casa, no silêncio da noite que segura, senti a alma esticar num esforço imenso de se fazer chegar ao outro lado do Atlântico.


 
 
 

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