grão em areia
- Marta d'Orey
- 1 de mar. de 2015
- 2 min de leitura
É curioso como a irreverência do tempo, e capaz de roubar em mãos largas, tudo aquilo que foi sem o deixar ser.
Ainda conto os dedos, todos os dias que passaram desde que, sobre duas asas, sobrevoei a paisagem pintada de branco gelado e azul brilhante, em traços ponteagudos e irregulares, mas que de violento nada têm, havendo por outro lado, uma harmonia fresca presente em cada sopro do vento que, em rajadas suaves, serpenteia alegremente a montanha.
É engraçado como as sensações se desvanecem em fumo, deixando apenas as cinzas daquilo que, um dia, foi fogo ardente.
Inspiro e expiro. Deixo o ar fresco congelar-me a ponta do nariz e encher-me o peito. Olho à volta, de olhos bem abertos, e deixo-os absorver todas as cores que a neve e o céu têm para dar. Ponho-me à escuta, e ouço o canto do corvo que ecoa na montanha e corre pelo reacho.
Mas este sítio é demasiado grande para um ser tão pequenino. E é por isso que eu gosto dele. Porque ao ser apenas um floco de neve, num glaciar gelado, fico mais perto de o compreender. Aqui percebo o Mundo que tenho na palma das mãos, e sei de cor as suas origens, sendo capaz de descrever este tal Milagre da Criação, que tornou a semente em árvore, e a nascente em oceano. Aqui eu sou grão e o Mundo é deserto simples e transparente, cuja plenitude não pede grandes equações de números rectos, e palavras salteadas em rascunho, que lhe descrevão a imensa simplicidade.
Agora, no sítio onde escrevo, a neve não paira no ar gelado, e a montanha não canta o sopro do vento. Já não me lembro do seu toque, nem do cheiro do ar que inspirei, mas do local onde o Criador arregalou as mangas e desenhou obra em tela branca, trouxe apenas uma paisagem que me diz mais que mil palavras. Este céu e esta terra, dizem-me apenas a maravilha que é ser grão nesta areia, e poder ter, ainda, um deserto por descobrir.

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